Coronavírus avança nas comunidades ribeirinhas de Santarém. Em 53 comunidades foram confirmados 374 casos da Covid-19

Com números cada vez mais expressivos registrados em Santarém, no oeste do Pará, a Covid-19 avança para as localidades do interior do município. Depois de atingir praticamente todos os bairros da área urbana da cidade, a doença agora se alastra pelas comunidades ribeirinhas e causa sérios impactos sociais e medo nos povos tradicionais. A interiorização da doença está ocorrendo em todo o país, principalmente depois de atingir as regiões metropolitanas e cidades mais populosas. Atualmente, Santarém possui 4.232 casos confirmados e 245 mortes pela doença. O último boletim divulgado pela Prefeitura apontou um acréscimo de mais 61 novos casos e três óbitos nas últimas horas. E nos últimos sete dias, foram registrados 433 novos casos confirmados e 37 mortes. Os níveis de propagação do novo coronavírus são cada vez mais alarmantes no município e a disseminação do vírus em lugares sem estrutura médica hospitalar para socorrer os pacientes é o que mais preocupa neste momento.

Um estudo elaborado por um grupo de pesquisadores apontou dados preocupantes dos impactos causados pela pandemia da Covid-19 nas comunidades ribeirinhas de Santarém. Do total de 149 comunidades em seis regiões pesquisadas, em 53 foram constados casos do novo coronavírus. Os testes foram realizados por equipes da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa). Foram aplicados 480 testes rápidos e 374 deram positivo para Covid-19.

O Arapiuns é a região com o maior número de casos confirmados. Lá, 158 pessoas testaram positivo para a doença. A região do Lago Grande vem em seguida com 71 casos positivos. Depois vem o Tapará com 62 casos confirmados. No Arapixuna, 28 pessoas tiveram resultado positivo. Em Urucurituba e Ituqui foram 19 confirmações. Por fim, na região do Aritapera foram 18 casos confirmados da doença. O método aplicado na pesquisa, não segue uma metodologia planejada. Por exemplo, na região de Urucurituba, apenas do total de nove comunidades, os testes foram aplicados em apenas duas comunidades, cada uma com 10 testes e em uma delas, os 10 deram positivo.

O estudo revelou um dado preocupante: a falta de serviços básicos de saúde nessas localidades. Eles existem, mas de forma muito precária. Muitos comunitários precisam se deslocar para a cidade em busca de atendimento médico.

As atividades da Secretaria Municipal de Saúde são desenvolvidas nas comunidades das regiões de rios por um número muito baixo de profissionais da área da saúde. Mas existem poucos profissionais para atender a demanda das grandes áreas. Por exemplo, a região do Lago Grande, que possui o maior número de comunidades, 67 no total e aproximadamente 18.000 habitantes, não há cinco médicos permanentes nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Dessa forma, a população da região conta apenas com o serviço oferecido por cinco enfermeiras, sete auxiliares técnicos de enfermagem e 41 Agentes Comunitários de Saúde (ACS). O acesso à saúde dos municípios do interior da Amazônia é uma realidade conhecida pelos governantes. Apesar disso, pouco investimento ou quase nenhum chega às comunidades ribeirinhas. E quando chega, a qualidade deixa a desejar.

Essa deficiência dos serviços de saúde oferecidos especialmente às comunidades ribeirinhas foi agravada ainda mais durante a pandemia da Covid-19, que acentuou a precariedade dos serviços ofertados pela Prefeitura de Santarém às populações dessas regiões. As lideranças comunitárias ouvidas pelos pesquisadores apontam que faltam médicos, medicamentos, ambulancha e até agentes comunitários de saúde para dar suporte aos moradores. Há relatos inclusive de profissionais de saúde com sintomas do coronavírus.

Muitos comunitários apresentam sintomas gripais e, sem informações sobre a doença, eles não sabem identificar possíveis sintomas da Covid-19. Eles reclamam da falta de informação clara sobre o novo coronavírus. Os próprios profissionais de saúde se queixam dessa precariedade, sobretudo em relação aos equipamentos de segurança e medicamentos e material para a higienização das equipes de saúde. Segundo eles, os EPIs são insuficientes para todos.

O avanço da pandemia da Covid-19 nas comunidades ribeirinhas, além de infectar várias pessoas, afetou também a principal atividade nessas localidades: a pesca.

O estudo foi elaborado por pesquisadores da Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (Sapopema), Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), e Earth Innovation Institute (EII), em parceria com a Colônia de Pescadores Z-20. Foram aplicadas entrevistas aos coordenadores de Núcleos de Base da Z-20 das regiões do Arapixuna, Aritapera, Ituqui, Urucurituba, Tapará, Maicá, Lago Grande do Curuai, Arapiuns, Tapajós, e núcleos de pescadores da cidade e Agentes Comunitários de Saúde de várias regiões nos meses de maio e junho. Também foram compilados os dados oficiais da Semsa e da Secretaria Municipal de Meio Ambiente Semma).

Atividade pesqueira afetada

As comunidades ribeirinhas se caracterizam pela diversidade de atividades que compõem a economia familiar. A pesca é uma das principais atividades econômicas de muitas famílias, que pescam tanto para o consumo quanto para a venda do pescado para os centros de abastecimentos a cidade, como feiras e mercados. Algumas comunidades desenvolvem o manejo da pesca, que desempenha um papel importante na economia familiar das comunidades. Por conta da pandemia da Covid-19, que chegou às regiões ribeirinhas, a realização do manejo do recurso pesqueiro impactou economicamente a vida das famílias que dependem dessa atividade.

Segundo o estudo, em Santarém a Colônia de Pescadores Z-20, possui 5.866 pescadores cadastrados que exercem a pesca artesanal como atividade geradora de renda e de subsistência, dos quais 4.679 estão habilitados para receber o seguro defeso. Desde o início da crise da Covid-19, e a implementação de medidas de isolamento social determinadas por autoridades locais, incluindo o fechamento de serviços não essenciais, houve o desencadeamento do efeito prejudicial sobre a economia dos pescadores, e secundariamente para a segurança alimentar das populações que dependem do pescado como principal fonte de renda.

Os dados obtidos pela Colônia de Pescadores Z-20 e pelo Laboratório de Geoinformação Aquática/Ufopa entre os meses de março e junho na Feira do Peixe, principal centro de comercialização de pescado em Santarém, houve uma diminuição expressiva do volume de pescado desembarcado. A média de volume de pescado nos meses de março, abril, e maio foi 50,6% menor quando comparado à média histórica do mesmo período dos últimos oito anos, passando de uma média de 46,72 toneladas para 23,10 toneladas durante a pandemia, o que representa uma perda de receita de aproximadamente R$ 235.000,00.

Os relatos dos coordenadores do núcleo de base evidenciam que a pesca e especialmente a comercialização de pescado foi grandemente impactada desde o início da pandemia no município. Embora a pesca de subsistência tenha sido pouco afetada, alguns pescadores pertencentes a grupos de risco ou já doentes estão impossibilitados de realizarem suas pescarias.

Um agravante a este cenário foi o fato do não recebimento do auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal para aos pescadores. Algumas famílias que receberam nas comunidades foram as inscritas no CAD-Único ou no programa Bolsa Família, cujos valores foram depositados automaticamente nas suas respectivas contas.

Conflitos de Pesca

Outro efeito crítico neste período de pandemia identificado pelos coordenadores dos núcleos de base foi a permanência dos episódios de pesca predatória nas comunidades, o que contribui para intensificação dos conflitos. Essas situações foram relatadas nas regiões do Ituqui, Urucurituba, Tapará e Aritapera. Na região do Maicá, próximo da cidade os coordenadores do núcleo de Jaderlândia e Uruará também relataram que houve conflitos provocados por invasores de outras comunidades e por geleiras. Os relatos indicam que um dos motivos é a ausência de fiscalização pelos órgãos responsáveis.

Dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, coletados de fevereiro a maio de 2020 registram 13 denúncias em Santarém envolvendo a pesca. Entre as irregularidades apontadas a maioria (69%) continua como denúncia, ou porque ainda não foram apuradas ou porque não foi possível sua averiguação. Das irregularidades já apuradas, somente uma gerou Autos de Infração e 23% estão em alguma etapa de Processo Administrativo.

As denúncias envolvem desde a pesca e comercialização no período do defeso de algumas espécies como pirarucu, tambaqui e mapará, a captura de animais silvestres como tracajá e capivara e pesca predatória que envolve o uso de apetrechos proibidos como o arrastão, pesca em locais proibidos e captura de espécies abaixo do tamanho mínimo de captura.

Outra irregularidade comumente denunciada é a pesca predatória pós período do defeso, constatada em três comunidades na região de Santarém, com destaque para a comunidade Santana do Ituqui. Entre os denunciados foram também identificados donos de geleiras nos lagos, que foram autuados, e denúncias pelo seu poder de captura superior ao das comunidades. Por esse motivo, em vários acordos de pesca já legalizados, esse poder de captura é limitado pelo número reduzido de canoas que estas geleiras podem utilizar. Além de pescadores de comunidades próximas e de outros municípios desrespeitando os acordos de pesca.

Terceiro setor

O levantamento feito pelos pesquisadores destacou ainda o importante apoio e atuação de entidades do terceiro setor nas comunidades ribeirinhas. Instituições como o Projeto Saúde e Alegria (PSA), a Sociedade Para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente (Sapopema), o Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Município de Santarém (STTR), a Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (FEAGLE), Colônia de Pescadores Z-20, Terra de Direito, ONG Fase e também a Universidade Federal do Oeste do Pará que desempenham uma importante função social contribuindo no processo de prevenção nesse período de pandemia que as comunidades estão enfrentando.

Considerações e recomendações

Ao fim do estudo, os pesquisadores destacam que os serviços de saúde pública oferecidos as comunidades ribeirinhas do município de Santarém chegaram em algumas comunidades no que tange à comunicação e educação em saúde sobre os modos de prevenção à Covid-19 realizados pelos ACS e equipe de enfermagem. Entretanto, a ausência da qualificação das unidades existentes de saúde com equipe e insumos específicos no tratamento e isolamento de casos suspeitos leves, e ausência de plano de remoção específico de casos moderados e graves para a realidade ribeirinha tornam-se agravantes para a transmissão da Covid-19 nessas comunidades.

Eles sugerem que sejam elaboradas políticas específicas que viabilizem a melhoria da infraestrutura e a redução das desigualdades no atendimento à saúde para os ribeirinhos, mas sem deixar de respeitar a cultura e modo de vida das populações tradicionais.

Quanto ao setor pesqueiro santareno, é evidente que se encontra em situação preocupante, que impacta milhares de profissionais que dependem, direta ou indiretamente, da atividade da pesca. Ainda nesse contexto, os pescadores artesanais estão enfrentando dificuldades pela queda brusca e inesperada da sua renda familiar. Mas também é importante destacar que a pesca de subsistência está desempenhando um importante papel para a manutenção da alimentação das famílias nas comunidades, demostrando mais uma vez a relevância do manejo dos recursos pesqueiros para a segurança alimentar e nutricional das populações ribeirinhas e da geração de renda.

Também é necessário destacar que, mesmo com os impactos causados pela pandemia da COVID-19 no setor pesqueiro, as invasões de pesca nos territórios pesqueiros no município de Santarém não cessaram. O que acende o alerta da possiblidade de intensificação desses conflitos de pesca na região com a retomada da normalidade da comercialização de pescado, e com a possiblidade de impactos na realização das ações de fiscalização por conta do déficit na arrecadação do governo durante a pandemia. Por isso, é importante um planejamento que considere como prioridade a manutenção de atividades que impactam na melhoria da condição de vida de populações em vulnerabilidade social.

Recomendações:

• Distribuição de máscaras que podem ser reutilizadas;

• Capacitação de ACS para notificação da evolução clínica de casos moderados e graves;

• Qualificação da infraestrutura das unidades de saúde existentes com equipamentos e

insumos para manejo de casos da Covid-19;

• Realizar monitoramento com plano de rastreamento e testagem dos casos suspeitos;

• Ampliação de testes respeitando a evolução do quadro de sintomas;

• Adaptação de enfermarias para tratamento de casos leves e isolamento de casos moderados

nas comunidades com oferta de oxigenoterapia;

• Plano de remoção para casos moderados e graves com equipamentos para isolamento e

tratamento de casos moderados na malha urbana de Santarém

• Medidas para assegurar transporte fluvial suficiente e seguro;

• Ampliar e facilitar o acesso do auxilio emergencial para pescadoras e pescadores;

• Fortalecimento das ações de fiscalização periódica para controle dos conflitos de pesca e na

pressão do estoque pesqueiro;

• Abertura de canal institucional, como PAA e outros programas, para comercialização do

pescado;

• Sistematização e articulação das ações de prevenção, monitoramento e atendimento de saúde primária nas comunidades.

A elaboração do estudo contou com a participação da doutora e professora Antônia Socorro Pena da Gama, David McGrath, Antônio José Bentes, Poliane Batista, Wandicleia Lopes de Sousa, Samela Bonfim, Rui Harayama, João Paulo de Cortes, Keid Nolan Gracivane Moura, Elizabete de Matos Serrão e Everaldo de Souza Martins Neto.

O estudo na íntegra pode ser baixado no site da Sapopema

Fotos: Sapopema

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