Mortes de Bruno e Dom revelam ausência do Estado e crimes em série no Vale do Javari

O Relatório da Comissão externa da Câmara dos Deputados e Senado, que acompanha as investigações no Vale do Javari onde recentemente foram assassinados o jornalista britânico Dominic Mark Phillips e o indigenista Bruno Araújo Pereira, revela a ausência do Estado e crimes em série no Vale do Javari. De acordo com a Comissão, o Relatório tem como objetivo sistematizar as informações colhidas por deputados federais no Vale do Javari, as quais darão robustez ao relatório final.

As ameaças de morte são constantes e praticamente naturalizadas no Vale do Javari

Os investigadores constatam e asseguram que “se nada for feito pelas instituições do Estado brasileiro, novas mortes e tragédias acontecerão na região”, daí a urgência do Relatório Final para que sejam tomadas medidas cabíveis de imediato para evitar que mais vidas sejam tombadas. A Comissão, por meio das documentações e relatos recolhidos elencam, no relatório, seis elementos fundamentais que se inter-relacionam e apontam para uma realidade que ameaça a vida dos povos e da floresta, na Amazônia.

Atalaia do Norte, interior do Amazonas,- que teve sua rotina alterada a partir do assassinato de Bruno e Dominique -, localizada às margens do Rio Javari, conta com uma população extremamente pobre e sem saneamento básico. Sua economia se baseia na caça, na pesca e nos rendimentos de servidores da Prefeitura. Vale do Javari contém um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH).

Para a Comissão, este crime lançou luzes em uma região na qual o Estado brasileiro se faz totalmente ausente e que é invisível a atuação mínima, básica das instituições afins. A população, em sua maioria, indígena, vive exposta e vulnerável a práticas criminosas, consideradas normais. “Não há, por parte do governo, proteção e defesa dos direitos dos povos indígenas no Vale do Javari”, afirma a Comissão.

Crimes ambientais no território indígena

O tráfico internacional de drogas, garimpagem ilegal e pesca irregular, – usada para lavar dinheiro do tráfico de drogas -, são alguns exemplos de crimes ‘normalizados’ no Vale do Javari, graças à ausência do Estado. “Vale destacar, ainda, que as oitivas realizadas pela Comissão em Atalaia do Norte apontam para a participação de uma pessoa chamada Colômbia no comando destas práticas ilegais, o que deve ser objeto de análise das investigações das autoridades policiais”.

“Segurança zero”. Iminente risco de morte de servidores e outros indigenistas

As ameaças de morte são constantes e praticamente naturalizadas no Vale do Javari, segundo o Relatório. “Meus parentes. Indígenas. Mayuruna. Que viaja nesses rio Javari principalmente, onde existem pelotões do exército (…) a gente está sendo ameaçado direto nesse sentido. Segurança zero”, conta um interrogado.

Sobre a veracidade dos crimes, uma testemunha comprova, temerosa. “A gente tem informações. Mas a gente corre o risco de expor essas pessoas, que são envolvidas com narcotráfico, pesca ilegal, as coisas ilícitas aqui no vale do Javari. Na região aqui que é fronteira com o Peru.”

O medo, segundo os auditores, é claro no semblantes daqueles que arriscam contar ao menos um pouco da realidade na esperança da mudança.

A falta de atuação das autoridades e a “tragédia anunciada”

A tragédia acompanhada recentemente já foi anunciada segundo o Relatório, por meio da demarcação das terras indígenas e se intensificou em 2012, quando Bruno começou a lutar pelas urnas de votação para a comunidade indígena, o que desencadeou numa ação a estatal que levou à destruição de balsas utilizadas no garimpo ilegal na Terra Indígena Vale do Javari. As tensões aumentaram, seguidas pela perseguição acirrada a Bruno, que foi exonerado do cargo na FUNAI. No mesmo ano é assassinado, no centro de Tabatinga, Maxciel, que trabalhava junto a Bruno. A partir daí as ameaças só aumentaram e a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), estava ciente dos perigos. “A morte do Bruno não é novidade. A gente sabia disso. Informações que, alguns dias antes a gente teve reunião com o Ministério Público de Tabatinga (…) alguns dias antes de Bruno subir. Uma semana antes. O advogado Eliésio relatou ameaças que ele recebeu”, relata testemunha durante investigação”.

Os investigadores afirmam que “é fundamental que nos debrucemos sobre estas denúncias, a fim de apurar possível prevaricação de alguns órgãos do Estado brasileiro, que a princípio não cumpriram com suas responsabilidades e não atuaram para coibir a prática de crimes ambientais e, consequentemente, crimes contra a vida”.

Necessidade de aprofundamentos nas investigações

Sobre a nota da Polícia Federal de que os executores agiram sozinhos, a Comissão contesta, a partir das investigações que adicionam outros elementos que comprovam que o assassinato de Bruno e Dom fazem parte de uma rede maior de criminalidade. “Reforçamos a necessidade de aprofundamento nas investigações, tendo em vista as fundadas suspeitas do envolvimento de organizações criminosas de maior porte nos delitos que ocorrem no Vale do Javari, em especial, nos cruéis assassinatos de Bruno e Dom”.

Ainda, segundo a Comissão, “há relatos que indicam financiadores fortemente armados e até o envolvimento de autoridades municipais. Assim, salta aos olhos, a existência de organizações criminosas na região”.

A presença e o trabalho de Bruno e Dom eram fundamentais na garantia dos Direitos dos Povos Indígenas e para a proteção da Amazônia. Durante as investigações, a Comissão pode ouvir, também, os relatos que demonstram o quanto Dom e Bruno eram queridos pela comunidade do Vale do Javari. “A gente tá muito, sofrendo demais com a morte do Bruno, com o jornalista, que foi um baque muito grande, como diz na língua português. Tá muito complicado.”

“Estamos num momento de guerra declarada à Amazônia”

Para o missionário comboniano, membro da Rede Igrejas e Mineração, da Comissão Especial da Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB) para a Mineração e a Ecologia Integral e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) padre Dário Bosi, enfatiza que quanto à qualidade dos enviados para o Relatório Institucional de Deputados e Senadores, são pessoas extremamente qualificadas e dedicadas. “É muito importante que o Poder Legislativo tome uma posição e apresente recomendações claras sobre os passos que precisam ser dados porque vemos de um outro lado uma inação por parte do governo e do poder executivo, diante desse massacre”.

Bosi acrescenta, ainda, que este Relatório é muito importante porque, diferentemente da afirmação da Polícia Federal, destaca a extrema conivência da pesca predatória e do tráfico de drogas na região e há de se destacar o protagonismo dos povos indígenas que, muito mais que a própria polícia cobram justiça. São protagonistas tanto das investigações quanto das denúncias”, enfatiza.

De acordo com Bosi, “o Relatório chega num momento significativo, de visibilidade internacional do caso, e demonstra à opinião pública nacional e internacional que estamos num momento de guerra declarada à Amazônia. Na Amazônia se perdeu o controle pela conivência do Estado”, enfatiza.

Fonte: REPAM-Brasil

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