Na madrugada silenciosa de 16 de agosto de 1942, o mar devolveu corpos à areia de Sergipe. Eram vítimas de uma guerra que parecia distante, mas que, naquela noite, bateu à porta do Nordeste com o estrondo de três torpedos alemães. O episódio, que mergulhou o país no luto e empurrou o Brasil para a Segunda Guerra Mundial, agora volta à tona nas telas e nas lembranças de quem se recusa a deixar o tempo apagar a dor dos náufragos.
As ondas quebravam como sempre, mas o mar trazia algo que ninguém esperava. Naquele amanhecer, pescadores de Estância e Barra dos Coqueiros viram corpos boiando, homens, mulheres, crianças. O oceano, que até então era sinônimo de sustento, se tornava um cemitério salgado.
Foi na noite de 15 para 16 de agosto de 1942 que o submarino alemão U-507 atacou três navios brasileiros na costa sergipana. O primeiro torpedo explodiu por volta das sete da noite. Depois vieram outros. Em poucas horas, quase 600 vidas foram engolidas pelo mar.
A tragédia despertou um país adormecido. O povo, em choque, foi às ruas exigir uma resposta. Sete dias depois, em 22 de agosto, o Brasil declarou guerra à Alemanha e à Itália. O sangue das vítimas transformou o silêncio em revolta, e Sergipe entrou, ainda que à força, para o mapa da Segunda Guerra Mundial.
Com o passar dos anos, o tempo tratou de cobrir as lembranças com areia. Mas a memória resiste nos nomes, Praia dos Náufragos, Rodovia dos Náufragos, e nas histórias contadas em voz baixa, nas esquinas de Aracaju.
É essa lembrança que o cinema quer reacender. O filme “Corações Naufragados”, dirigido por Caco Souza, vai reviver o drama daquela noite que mudou o destino do Brasil. A trama acompanha uma jovem jornalista (Olívia Torres) que escreve sob um pseudônimo masculino e se envolve com um capitão sergipano (William Nascimento), líder clandestino antinazista. Juntos, enfrentam os medos, a censura e o horror de uma guerra que parecia impossível de alcançar o litoral brasileiro.
A roteirista e produtora Cacilda de Jesus, que passou sete anos pesquisando documentos e relatos, quer dar rosto e voz aos que foram esquecidos. “Sou historiadora e dou muito valor à memória”, diz. “Nenhum lugar do Brasil ficou tão perto da guerra como Sergipe, e é essa história que queremos contar.”
Mas a história não é apenas de ficção. O professor Dilton Maynard, do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, dedica-se a estudar o impacto dos torpedeamentos no cotidiano de Aracaju. Para ele, compreender o passado é também entender o presente:
“Foram mais de 500 mortos, e parte desses corpos chegou a uma cidade de apenas 50 mil habitantes. O choque foi imenso. Imagine o que é ver a guerra bater à porta quando a vida se resumia a procissões, cinemas e jogos de futebol.”
Maynard compara o episódio à tragédia da Boate Kiss, em 2013: “Se hoje já é difícil conceber a perda de tantos jovens, imagine em 1942, quando o mundo parecia tão longe e, de repente, o horror estava ali, no quintal.”
O pesquisador lembra que poucos sergipanos conhecem a dimensão dessa história. As homenagens — a praia, o cemitério e a rodovia dos Náufragos, mantêm viva a lembrança, mas falta o elo que una essas memórias em torno do que realmente significou aquela noite.
“Os mais velhos ainda se lembram”, diz o professor. “Mas os jovens, não. E é por isso que contar essa história, no cinema, na escola, na rua, é mais do que lembrar: é impedir que o mar leve de vez o que restou dos nossos náufragos.”
Com informações da ufs.br