Dois fiscais ambientais da Secretaria do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam) e oito policiais militares foram alvos de disparos de armas de fogo. O ataque aconteceu por volta das 8 horas de quarta-feira (16), na estrada que dá acesso ao Parque Ambiental Estadual de Guajará-Mirim, a 568 quilômetros de Porto Velho, capital de Rondônia. Foi o terceiro atentado em um período de três meses, e os conflitos estão relacionados à mudança da legislação ambiental, por iniciativa do governo Marcos Rocha (PSL), favorável aos invasores.
Três tiros atingiram um carro do Batalhão da Polícia Militar Ambiental, na parte superior da porta dianteira. “O alvo eram nossas cabeças, atiraram para matar, planejaram homicídio”, disse um fiscal à agência Amazônia Real. Ele pediu anonimato por temer por sua segurança e a dos colegas. Os atiradores ficaram escondidos na floresta. Os policiais não tiveram tempo de responder ao ataque. Eles protegeram os fiscais dos tiros e depois retornaram. Mas ao realizar as buscas não encontraram pistas dos criminosos. Apenas os militares usavam coletes à prova de balas.
Em maio do ano passado, os fiscais faziam trabalho de monitoramento de rotina no Parque de Guajará-Mirim, quando foram alvo de uma emboscada. Eram cerca de 50 homens armados e encapuzados. Em dezembro, um motorista da Sedam foi baleado durante confronto que durou cerca de 15 minutos com os posseiros.
A violência aumentou em Rondônia depois que o governador Marcos Rocha (PSL) e os deputados estaduais, aliados do presidente Jair Bolsonaro (PL), iniciaram uma ação de desmonte ambiental de Rondônia. Em maio de 2021, eles aprovaram o Projeto de Lei Complementar (PLC) 80/20 com a proposta de reduzir em cerca de 152 mil hectares a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e em outros 10 mil hectares o Parque Estadual Guajará-Mirim. A área total equivale a 162 mil campos de futebol.
Essas mudanças na legislação estão, na prática, ameaçando o ambiente e colocando em perigo a vida de policiais, fiscais e indígenas, sobretudo os isolados contactados pela Fundação Nacional de Índio (Funai). Os isolados estão dentro do parque, numa área de 216.568 hectares que compreende as cidades de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, no noroeste de Rondônia e já na fronteira com a Bolívia.
As ações de Bolsonaro e seus aliados nos estados da Amazônia representam uma ameaça concreta para a floresta. O desmatamento na região em 2021 foi o maior registrado em dez anos, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), responsável pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD). De acordo com o monitoramento, uma área de 10.362 quilômetros quadrados foi destruída no ano passado, 29% mais do que em 2020.
Os 10.362 quilômetros quadrados equivalem à metade de Sergipe. E Rondônia está entre os estados da Amazônia Legal que superaram a devastação registrada no ano anterior. “Também tiveram as maiores áreas de floresta destruídas em 10 anos”, diz o Imazon. O estado desmatou 1.290 quilômetros quadrados.
Na Hungria, o presidente brasileiro fez nova declaração falsa e negacionista contra os dados dos desmatamentos da floresta amazônica. De acordo com a TV Cultura, ao lado do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, um notório líder de direita xenófobo, Bolsonaro falou que o Brasil não destrói a Amazônia. “Nós preservamos 63% do nosso território. E não se encontra isso em praticamente nenhum outro país do mundo. Nós nos preocupamos até mesmo com o reflorestamento, coisa que não vejo nos países da Europa como um todo”, alegou Bolsonaro. Desde que assumiu, em 2019, seu governo provocou uma onda de desmonte da política ambiental no país.
Conflitos por terras em alta
A Frente Ampla de Defesa das Áreas Protegidas em Rondônia, composta pelas organizações Kanindé, Greenpeace, SOS Amazônia, WWF-Brasil e Conselho Indigenista Missionário (Cimi), encaminhou ao Ministério Público Federal (MPF) um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para barrar a alteração das áreas proposta pelo governo de Marcos Rocha. As organizações também enviaram carta ao governador solicitando vetar a lei e explicando os impactos. Em novembro de 2021, o Tribunal de Justiça de Rondônia considerou a lei inconstitucional.
“Se os conflitos estão crescendo, se essas 120 mil cabeças de gado estão na reserva extrativista e no parque estadual é porque o poder público tem se mostrado ineficiente na proteção dessas unidades de conservação violando seu dever constitucional”, disse o desembargador Jorge Ribeiro da Luz na decisão, alegando que o Estado não pode renunciar ao dever de proteger o meio ambiente.
Mesmo com a decisão da Justiça, a grilagem de terras e as invasões não cessaram e não há previsão de resolução. “A falta de cumprimento da lei gera esse tipo de conflito. A quem interessa que o parque continue invadido? Apenas aos que fomentam a grilagem de terras públicas e a quem quer acabar com as reservas”, disse Neidinha Suruí, conselheira do parque, liderança ambiental e co-fundadora da Associação Etnoambiental Kanindé que atua com mais de 60 etnias. “Estamos em época eleitoral, e nada se faz com medo de perder votos. Nas eleições os candidatos sempre falam que vão regularizar as invasões. Sempre teve essa prática. As reservas viram moedas de troca. O que aconteceu agora é a repetição do que houve antes, quando atiraram e acertaram o motorista da Sedam e, mesmo assim, o governo não mandou fazer a desintrusão do parque.”
A promotora de Justiça da cidade de Guajará Mirim, Naiara Ames de Castro Lazzari, declarou, sobre o atentado desta quarta-feira (16), que “o procedimento de investigação é da Polícia Civil, que o Ministério Público acompanha”. Lazzari também afirmou que o “MP não coaduna com qualquer ilícito praticado e acompanhará os desdobramentos”.
Por meio da assessoria de comunicação, o comando da PM informou à reportagem que “vai apurar e planejar uma ação com os policiais ambientais”. Procurada, a Sedam disse que não comenta o episódio, mas assegurou que o policiamento nas fiscalizações ambientais será reforçado e o relatório policial vai ser enviado para autoridades públicas com pedido de providências.
Integridade dos fiscais
Neidinha Suruí defende o uso de tropas federais para garantir a integridade física dos fiscais ambientais e acabar com a grilagem de terras dentro do parque. “A solução é tirar esses invasores. Quem for beneficiário de reforma agrária assenta a pessoa em outro local. Entrar em Unidade de Conservação sem autorização é crime, é invasão. Quando o Tribunal de Justiça declarou inconstitucionalidade, em nenhum momento o governo foi lá tirar os invasores. Deram tiro, acertaram funcionário da Sedam e o que o governo fez? Ficou quieto. O que precisa é mandar a Força Nacional pra lá e tirar todos os invasores”, diz.
Em 2021, cerca de 60 famílias foram retiradas do “Bico do Parque”, que é a chamada zona de amortecimento de uma unidade de conservação para “filtrar os impactos” que ocorrem fora dela, como poluição, invasões e avanço da ocupação humana.
Os conflitos no parque, assim como o desmatamento e grilagem de terras, se acentuaram a partir de 2014, na cheia do rio Madeira. Na época foi construída uma rodovia dentro da Unidade de Conservação, com desvio de 11,5 quilômetros para retirar as cidades de Guajará-Mirim e Nova Mamoré do isolamento e garantir o acesso pelas regiões de Ariquemes e Buritis. A chamada estrada-parque foi construída com 30 metros de largura interrompendo vários igarapés perenes ou intermitentes.
Doutor em Biologia Animal pela Universidade de Brasília, o pesquisador Júlio Dalponte elaborou um estudo naquele ano apontando vários danos por causa da rodovia dentro do parque. “Estrada no Parque Estadual Guajará-Mirim atravessa uma área bem conservada com florestas densas contínuas, zonas inundáveis, rios e igarapés com floresta ribeirinha. Embora haja intenso movimento de mamíferos ao longo de toda a estrada, esses trechos de maior umidade podem ser considerados mais significativos como corredores de fauna, como confirmou o meu estudo. Portanto, são locais onde poderão ocorrer mais atropelamentos e interferência nos padrões de deslocamento dos animais, especialmente se a estrada vier a ser asfaltada”, afirmou.
Construída para ser uma medida de acesso emergencial durante a cheia, a rodovia acabou se tornando de caráter permanente e foi nesse trecho que militares e fiscais foram alvejados. O Parque Estadual de Guajará-Mirim é uma das 117 unidades de conservação da Amazônia que recebem recursos do Arpa (Programa Áreas Protegidas da Amazônia), uma ação entre os governos federal, estaduais, iniciativa privada e organizações da sociedade civil para consolidar a gestão dessas áreas. O programa tem apoio financeiro do GEF (Global Environment Facility), do Banco Mundial e da Fundação Gordon e Betty Moore, e outros organismos.
Fonte: Amazônia Real