Apenas dois quilômetros separam a aldeia Kenkro de um foco de invasão na porção sul da Terra Indígena Trincheira Bacajá, no Pará. Da aldeia, os Xikrin conseguem ouvir o barulho de motosserras e tratores avançando sobre seu território. O acirramento dos conflitos coloca em risco integridade dos indígenas e potencializa avanço do novo coronavírus no território.
Em junho, 32 hectares foram desmatados na TI, quase dez vezes a mais que o detectado no mês passado, quebrando uma tendência de queda desde que operações do Ibama foram realizadas, a partir de abril deste ano. Com o fim das ações de fiscalização em maio, o desmatamento voltou a subir e as invasões se intensificaram na região sudeste. O monitoramento remoto ainda identificou a abertura de uma estrada ilegal de sete quilômetros próxima à aldeia Kenkro.
“Além da perda de biodiversidade em decorrência do desmatamento, o problema, assume um nível de urgência humanitária e de saúde, devido ao risco de contaminação por Covid-19 nas aldeias”, alerta Thais Mantovanelli, antropóloga do ISA. Já são ao menos sete de Covid-19 na TI Trincheira Bacajá, segundo informações do Distrito Especial de Saúde Indígena (Dsei) Altamira divulgadas hoje (31).
“Caça aos índios”
As invasões na TI Trincheira Bacajá não são novidade mas se agravaram no ano passado. Em agosto de 2019 a pressão sobre o território e indígenas chegou no limite com três frentes de invasões concomitantes. Na época, por meio de mensagens de áudio, um grupo de 300 invasores ameaçou “caçar” os indígenas: “Olha o tanto de gente que tá aí dentro da mata pra pegar os índios aí, dentro da mata de vocês. Tem mais de 300 homens dentro da mata caçando os índios”, diz o áudio que acompanha uma foto mostrando os invasores. [Saiba mais]
Ações conjuntas de fiscalização e monitoramento foram realizadas com o intuito de conter as atividades ilegais, e as invasões arrefeceram. Mas com o fim das ações de fiscalização do Ibama, os indígenas temem que a história possa se repetir.
Já no início do ano os Xikrin demonstravam preocupação com a retomada das invasões. Em um encontro na aldeia Krimex, em fevereiro, eles denunciaram atividades ilegais na porção sudoeste de seu território.“Estão roubando a floresta, esse nosso conhecimento. Porque fazem isso? Deixem disso! (…) Se derrubarem a floresta meu neto irá me perguntar: Onde estão as árvores e o mato, avô? O que vou dizer para ele?”, disse Tedjere Xikrin, cacique antigo da aldeia RapKô, um dos epicentros das invasões em 2019.
Seca, desmatamento e fogo
Com o fim do período das chuvas, o desmatamento na bacia do Xingu aumentou. Foram desmatados 32,8 mil hectares entre maio e junho, uma área maior do que o município de Belo Horizonte (MG), 57% a mais em relação aos dois meses anteriores.
O desmatamento se concentrou na porção paraense da bacia, onde foram desmatados mais de 23 mil hectares, 71% do total. No Mato Grosso outra porcentagem salta aos olhos: 64% do desmatamento detectado não tem autorização de desmate, taxa que atingiu 100% de ilegalidade no município de Querência e 82% em Paranatinga.
Dos 11 mil ha de floresta derrubados em Unidades de Conservação na bacia, quase 2/3 ocorreram somente na APA Triunfo do Xingu, que contabilizou 6,9 mil hectares desmatados entre maio e junho. A chegada da estação das secas pode agravar o avanço do desmatamento e aumentar a incidência de queimadas. Só em julho já foram detectados 459 focos de calor, quase seis vezes mais do que o íncide de junho, quando foram contabilizados 79 focos.
Outra UC que chamou atenção foi a Floresta Nacional (Flona) de Altamira, com pouco mais de 2 mil hectares desmatados no período. Só entre janeiro e junho foram desmatados o equivalente a 75% de todo o desmatamento do ano passado. Grilagem e garimpo ilegal explicam o avanço da pressão sobre a área, que está na região de influência da BR-163.
Parte das áreas afetadas pelo garimpo ilegal na Flona incidem em uma área sob concessão florestal, a Unidade de Manejo Florestal II (UMF). Além disso, foram identificados seis requerimentos de pesquisa que mostram o interesse de terceiros na exploração minerária da área. Atividades minerárias, no entanto, são incompatíveis com os objetivos da Flona, segundo seu plano de manejo. Desde 2019 a Rede Xingu+ denuncia a intensificação do garimpo ilegal, mas ainda não houve nenhuma ação de fiscalização na área.
Em 2011, o ICMBio, responsável pela gestão da UC, publicou um mapa com uma área efetivamente menor que aquela inicialmente prevista em seu memorial descritivo. O órgão propôs uma nova interpretação ao memorial sob o argumento de sanar erros na plotagem de seus limites, o que provocou uma redução de quase 38 mil hectares no território, excluindo justamente a área com mais ocupações irregulares na UC.
“Isso aconteceu à revelia da Constituição, que garante que qualquer alteração de limites de UCs Federais só pode ser realizada por meio de lei”, explica Elis Araújo, advogada do ISA. “Na prática, a redefinição administrativa dos limites da Flona criou a expectativa na região de novas reduções, o que mantém uma pressão ininterrupta sobre o território”.
Terras Indígenas sob pressão
Apesar do avanço da pandemia de Covid-19, entre maio e junho o desmatamento em Terras Indígenas aumentou 84% em relação ao bimestre anterior.
A Terra Indígena Kayapó concentrou 45% do total desmatado em TIs na bacia no período, com 357 ha desmatados para o garimpo ilegal. Ao mesmo tempo em que é a TI com maior incidência de garimpo, também apresenta o maior número de casos de contágio e mortes por Covid-19: já são ao menos oito mortes e 1.119 casos confirmados segundo o Dsei Kayapó.
Após uma redução no desmatamento, a TI Apyterewa voltou ao topo do ranking no último período, com 171 ha de florestas derrubadas, um aumento de 149% em relação ao bimestre anterior. Ainda não há casos do novo coronavírus confirmados no território dos Parakanã.
Os dados são do 19º boletim Sirad X, o sistema de monitoramento de desmatamento da Rede Xingu +, uma articulação de indígenas, ribeirinhos e seus parceiros que vivem ou atuam na bacia do Xingu.
Fonte: ISA