Tucunaré, pirapucu, trairão e mandubé estão entre os peixes mais consumidos pelas comunidades ribeirinhas e indígenas do Amapá, na região Norte do país. Graças ao garimpo, também estão entre os mais perigosos para a saúde. No pirapucu foram detectadas quantidades de mercúrio quatro vezes maiores do que o limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). As informações constam em um estudo publicado em julho na Revista Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública.
Os pesquisadores analisaram 428 amostras de peixes capturados entre 2017 e 2018 em cinco rios do Amapá. Os pontos de coleta ficam próximos de potenciais áreas de garimpo, onde o mercúrio é comumente usado para separar o ouro das rochas e da areia. O resultado é que todas as amostras de peixe apresentaram níveis detectáveis de mercúrio. Em 28,7% delas, a quantidade ultrapassava o limite da OMS.
O estudo — uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz, o WWF-Brasil, o Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (IEPA) e o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) — revela os riscos a que estão submetidas as populações indígenas e ribeirinhas do estado, especialmente as crianças.
Para recolher as amostras de peixe, a equipe viajou por rios de difícil acesso, como trechos do Oiapoque e do Araguari.
“Estudos mostram que se a criança é exposta ao mercúrio ainda na barriga da mãe, ela pode ter prejuízos no coeficiente de inteligência que vão se arrastar por toda a vida. Ela vai ter dificuldade na escola, vai ter menos chances de conseguir um bom emprego e renda. Isso acaba perpetuando o ciclo de desigualdade e de pobreza”, afirma Paulo Basta, médico e pesquisador da Fiocruz. Nos casos mais graves, o bebê pode nascer com malformações.
Nos adultos, Basta explica que a contaminação pode levar a problemas motores, como dificuldade para caminhar e tremores nas mãos, alterações na audição e visão e até demência.
Segundo Décio Yokota, coordenador executivo adjunto do Iepé, indígenas de pelo menos quatro territórios se alimentam dos peixes que vivem na área do estudo: Wajãpi, Uaçá, Juminã e Galibi. Para estas populações, o peixe é a principal fonte de proteína e também o principal vetor de contaminação por mercúrio, devido à sua característica de bioacumulação. “O peixinho come a alga, daí um peixe maior come milhões de peixinhos, que é comido por outro peixe ainda maior. Por isso os peixes mais contaminados são geralmente os topos de cadeia, que neste processo acumulam uma quantidade muito grande de mercúrio”, explica Yokota.
Isso explica por que os peixes carnívoros apresentaram os maiores níveis de contaminação — 77,6% deles tinham mais mercúrio que o permitido pela OMS. “Se você comer esses peixes contaminados todos os dias, a cada nova alimentação você está reforçando a sua dose de contaminação”, destaca Basta.
Entre os peixes onívoros (que se alimentam de carne e plantas) essa proporção cai para 20%, despencando para 2,4% entre os herbívoros, que se alimentam apenas de plantas. Por isso, os pesquisadores aconselham que as pessoas comam no máximo 200 gramas de peixes carnívoros por semana. No caso do mandubé, pirapucu, tucunaré e trairão, o consumo deve ser restrito a uma vez por mês.
Uma orientação difícil de ser seguida por quem raramente tem acesso a outras fontes de proteína, reconhece Yokota. “O ideal seria eliminar o garimpo. Não podendo fazer isso, a gente precisa pensar em uma modificação da alimentação. Mas não podemos recomendar a pessoas que não têm outra fonte de proteína que não comam peixes. Por isso sugerimos que tentem priorizar os consumo de peixes herbívoros, que tem um grau de contaminação muito menor”.
Segundo estudo de 2014, o garimpo é a principal causa de desmatamento no Escudo das Guianas, uma área de 250 milhões de hectares inclui parte do Amapá e do Pará, além da Guiana Francesa, Suriname, Guiana e parte da Venezuela. Um problema histórico que vem se agravando nos últimos anos, segundo Marcelo Oliveira, especialista em conservação da WWF Brasil. “O que a gente ouve dos gestores das Unidades de Conservação do Amapá é que a fiscalização não tem sido efetiva, e a sinalização política federal é terrível. Se você analisar a Amazônia como um todo, [o garimpo] só vem aumentando”, afirma.
Para Oliveira, é urgente que se produzam estudos sobre o impacto da contaminação do mercúrio nos povos da Amazônia. “Sabemos que as pessoas estão contaminadas em várias regiões, como nos Yanomami, nos Munduruku… mas quais são os efeitos? Não tem investimento para se trabalhar nos efeitos da contaminação nas populações”, lamenta.
A fim de suprir esta falta de informação, ainda neste ano as mesmas instituições de pesquisa devem realizar estudos para avaliar o impacto do mercúrio sobre a saúde dos indígenas Munduruku, no Pará, e sobre as famílias ribeirinhas do Amapá.