Indígena Kokama denuncia estupros por policiais durante prisão ilegal no interior do Amazonas

Um caso chocante de violência institucional e sexual envolvendo uma mulher indígena da etnia Kokama veio à tona no Amazonas e ganhou as redes sociais de todo o país nesta quarta-feira (23), expondo uma das faces mais cruéis do sistema penal brasileiro, especialmente nas regiões mais remotas da Amazônia. A jovem, de 29 anos, foi mantida ilegalmente por nove meses em uma cela masculina na 53ª Delegacia de Polícia de Santo Antônio do Içá, onde foi estuprada repetidamente por ao menos quatro policiais civis e um guarda municipal.

O caso foi mostrado inicialmente pelo site Sumauma, no último dia 18 de julho, e hoje, os maiores meios de comunicação do Brasil repercutiram a notícia.

A vítima estava com seu filho recém-nascido durante parte da detenção. Os abusos, segundo relato feito à Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), começaram em novembro de 2022, apenas 20 dias após o parto, e continuaram de forma sistemática até sua transferência para uma unidade prisional feminina em Manaus, em agosto de 2023.

Segundo a Defensoria, a indígena Kokama foi detida em condições ilegais e desumanas, em um ambiente totalmente inadequado para custódia de mulheres. Presa sem acompanhamento jurídico e sem julgamento, ela foi colocada em uma cela improvisada, com homens, numa prática recorrente em pequenas cidades do interior do estado, onde não há estrutura prisional adequada.

Durante o período em que esteve encarcerada, a jovem mãe foi estuprada por agentes do próprio Estado que deveriam zelar por sua integridade física. A Defensoria afirma que os abusos ocorreram em diferentes turnos e locais dentro da delegacia, inclusive durante a presença do filho recém-nascido na cela.

O relato da vítima só veio à tona após ela demonstrar sinais de profundo abalo emocional na unidade feminina em Manaus, para onde foi transferida. Internas relataram seu estado de pânico constante, recusa em se alimentar e crises de choro. A Defensoria foi então acionada, e realizou escuta humanizada com apoio psicológico.

Após o depoimento, a vítima foi encaminhada à Delegacia da Mulher, onde passou por exames periciais. Laudo do Instituto Médico Legal (IML) confirmou a ocorrência de conjunção carnal e apontou lesões compatíveis com estupro e violência física. O documento reforça a materialidade dos crimes denunciados.

Apesar da gravidade dos fatos, até o momento, não há notícia de qualquer prisão ou afastamento dos acusados. A Defensoria afirma que pediu medidas protetivas urgentes, inclusive o encaminhamento da vítima a regime domiciliar, com base em tratados internacionais e jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Também foi solicitada assistência psicológica contínua, atendimento médico, proteção à família da vítima e acompanhamento permanente do caso pelas corregedorias da Polícia Civil e do Ministério Público.

O caso revela um padrão de violações que afetam principalmente mulheres indígenas e ribeirinhas em regiões isoladas da Amazônia, onde a precariedade estrutural do sistema de Justiça abre caminho para a impunidade e o abuso.

“É um crime do Estado contra uma cidadã que deveria estar sob proteção. O que ocorreu em Santo Antônio do Içá não é apenas um episódio de violência sexual, é um retrato cruel da negligência institucional, do racismo estrutural e da ausência completa de garantias básicas”, disse um defensor público envolvido no caso, que preferiu não se identificar.

Em nota à imprensa, a Defensoria Pública do Amazonas reafirmou que seguirá atuando no caso e exigindo providências das autoridades competentes. A instituição cobra uma resposta das corregedorias da Polícia Civil, do Ministério Público do Estado, da Secretaria de Segurança Pública e do Governo do Amazonas, que, até o momento, não se pronunciaram publicamente.

O caso da jovem Kokama escancara a vulnerabilidade extrema vivida por mulheres indígenas no interior do Brasil e expõe a necessidade urgente de políticas de proteção específicas para povos tradicionais. A Defensoria vê o episódio como emblemático e deve encaminhar o caso também para organismos internacionais de direitos humanos.

Enquanto a vítima tenta se reerguer em meio ao trauma e ao medo de retaliações – já que seus filhos e a mãe continuam morando no mesmo município dos acusados – a sociedade aguarda uma resposta firme e célere das autoridades.

A impunidade neste caso não seria apenas uma falha judicial: seria a confirmação de que o Estado, além de omisso, compactua com a violência contra os povos indígenas da Amazônia.

Leia a nota da defensoria

“Defensoria Pública do Amazonas acompanha caso de estupros contra reeducanda indígena

A Defensoria Pública do Estado do Amazonas, por meio do Núcleo de Atendimento Prisional, informa que tomou conhecimento, no dia 28 de agosto de 2023, do relato de múltiplos estupros sofridos por uma reeducanda indígena da etnia Kokama durante o período em que esteve custodiada na Delegacia de Polícia do município de Santo Antônio do Içá (AM).

A reeducanda, identificada pelas iniciais L. M. S., foi transferida para a Unidade Prisional Feminina de Manaus em 27 de agosto de 2023. Embora o atendimento jurídico inicial estivesse programado para a semana seguinte, a Defensoria Pública foi acionada por outras internas diante do estado de extrema debilidade emocional da custodiada, que se mostrava abatida, chorava constantemente e se recusava a se alimentar. Diante da gravidade da situação, o atendimento foi antecipado para o dia seguinte, de forma emergencial.

Durante o atendimento, conduzido por equipe da Defensoria com o apoio de profissionais da psicologia da unidade prisional, L. M. S. relatou ter sido estuprada repetidamente, ao longo de mais de nove meses, por ao menos quatro policiais e um guarda municipal dentro da delegacia de Santo Antônio do Içá. Segundo a reeducanda, os abusos ocorreram inclusive durante o período de resguardo, apenas 20 dias após o parto, muitas vezes na presença de seu filho recém-nascido.

Após o relato, a Defensoria Pública solicitou o imediato encaminhamento da vítima à Delegacia da Mulher, onde foi realizado exame de corpo de delito no mesmo dia. O laudo pericial confirmou a ocorrência de conjunção carnal e a presença de sinais de violência.

Diante da materialidade do crime, a Defensoria adotou as seguintes providências:

1. Realização de escuta qualificada com apoio da equipe multidisciplinar e participação do Defensor Público especializado em Direitos Humanos;

2. Aplicação de protocolo humanizado para a tomada do depoimento, com perguntas pré-elaboradas e gravação oficial do ato, evitando reiterações traumáticas;

3. Encaminhamento de acompanhamento psicológico e médico contínuo à reeducanda;

4. Protocolo de pedido à Vara de Execuções Penais de cumprimento de pena em regime domiciliar, com base em tratados internacionais e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

À época, a vítima se encontrava extremamente abalada e com receio de que, caso o caso viesse a público, houvesse retaliação por parte dos policiais envolvidos, já que sua mãe e seus filhos ainda residiam no interior do estado. Diante desse contexto de vulnerabilidade, a Defensoria Pública optou por conduzir o caso com a máxima cautela, zelando pela proteção integral da vítima e de seus familiares, ao mesmo tempo em que adotava todas as medidas legais cabíveis para garantir sua segurança e responsabilização dos autores.

A Defensoria Pública reforça a gravidade das denúncias e destaca que seguirá acompanhando o caso de forma rigorosa. A Instituição também ressalta a importância de sua presença nas unidades prisionais como instrumento de fiscalização do cumprimento dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.

Manaus, 23 de julho de 2025

Defensoria Pública do Estado do Amazonas”.

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